terça-feira, 21 de março de 2017

Diário de uma escrava e o terror real



Eu adoro livros de terror. Mais do que filmes, acho que são vários os temas, que, quando trabalhados no formato de livros ficam mais assustadores e sombrios do que na tela. Leio terror de todos os tipos: fantasmas, demônios, alienígenas, psicopatas em geral e etc, e já li livros com enredos altamente bizarros, com personagens extremamente perturbados. Mas nenhum deles me preparou para o que seria a leitura de ‘Diário de uma escrava’.


Esse livro da Darkside foi uma experiência tão perturbadora que eu simplesmente não consegui parar de ler... acho que se eu tivesse abaixado o livro em algum momento, não teria coragem de voltar para ele. Em vários momentos, minha vontade foi arremessar o livro longe e não voltar para essa história e para esse universo nunca mais. A narrativa de Laura, uma menina que, aos 18 anos, conta como foi sequestrada aos 14, e mantida em cativeiro desde então, sofrendo torturas e estupros diariamente é de revirar o estômago. É uma leitura angustiante, que dá raiva, nojo, desespero.

A escrita de Rô Mierling é crua, visceral e direta ao ponto. Sem enfeitar, sem disfarçar, ela nos introduz à vida de horrores diários da sua personagem. Além dos trechos narrados diretamente por Laura, outros trechos do livro, em terceira pessoa narram acontecimentos com outras vítimas, sempre mantendo o mesmo tom apavorante. Embora eu considere que a autora forçou alguns pontos para que a história tivesse o desfecho imaginado por ela (e não vou tecer nenhum comentário sobre o final para não dar spoilers), é inegável que o absurdo do dia-a-dia de Laura é a infeliz realidade de inúmeras meninas e mulheres mundo afora.


"...todos ali se divertindo, conversando, comemorando ou discutindo assuntos diversos, e eu ali, sentada com um matador de meninas, um psicopata. Quantas vezes nos sentamos em lugares assim sem saber o que acontece na mesa ao lado?"


Embora a história de Laura não seja baseada em um caso específico, sua narrativa foi construída com base em diversos casos de sequestro de crianças e adolescentes que acontecem no Brasil e no mundo. No final do livro, existe uma lista de casos reais que se assemelham ao da história, bem como a bibliografia utilizada pela autora como fonte. A história de Laura é desesperadora por si só, mas quando somos lembrados que isso acontece diariamente com diversas meninas ao redor do globo, fica ainda mais revoltante. 

    “Hoje, eu me levantei para fazer minhas necessidades, comi um pedaço de pão e chorei. Sempre chega uma hora em que o ser humano deixa de ser humano, deixa de ter esperanças. Cheguei ao meu limite.”
 
Como de costume, o trabalho de edição da Darkside está impecável. Mas a capa linda, com verniz localizado, corte das folhas colorido, fita de marcar páginas, nada disso dá um vislumbre do horror escondido nas páginas desse livro. Eu diria que entre os livros da Darkside esse foi o que mais me perturbou. É impossível parar, é impossível esquecer. Diário de uma escrava é uma verdadeira história de terror, dessas que nos deixa apavorados durante a leitura e que nos assombra por muito tempo depois de termos chegado à ultima página.


quinta-feira, 16 de março de 2017

Precisamos falar sobre o Kevin e a maternidade romanceada



Eu jamais diria que Precisamos falar sobre o Kevin é um livro que eu poderia ter escrito. Provavelmente, nem em 100 anos eu seria capaz de escrever com a perícia da Lionel Shriver. Mas, descontando-se o estilo, confesso eu me vi constantemente na leitura. Em vários momentos, trechos inteiros me pareciam terem sido extraídos diretamente dos meus próprios pensamentos e questionamentos. Pensando bem, mesmo sem considerar a sua maneira sensacional de organizar as palavras, dificilmente esse seria um livro que eu teria escrito. Muito do que é dito compõe aqueles pensamentos impróprios, egoístas, asquerosos, que temos na calada da noite e não compartilhamos com ninguém, com medo do que pensarão de nós se os revelarmos.

 "Para mim, no momento, importa ser mais compreendida que amada."

Em formas de cartas, o livro acompanha Eva Khatchadourian na reconstrução da sua maternidade. Seu filho Kevin, aos 15 anos se dirigiu à sua escola munido de uma besta carregada de flechas e matou 9 pessoas, em um tipo de crime preocupantemente comum nos EUA. Por que ele fez isso? Qual é a participação dela, como mãe, nesses assassinatos? É culpa da criação? Dos genes? Do ambiente? Dos familiares? Nas cartas, sempre direcionadas ao pai de Kevin, Eva traça um caminho desde a discussão de ‘ter ou não ter um filho’ até a fatídica quinta-feira na tentativa de compreender o que aconteceu, e qual é a participação de cada um dos atores envolvidos nesse massacre.
 "Há qualquer coisa de niilista em não ter filhos, Franklin. Como se você não acreditasse nessa coisa toda de humanidade."

Para começo de conversa, a escrita da Lionel é magistral. Sua forma de adjetivar é fantástica. É um livro bem escrito, sem ser pedante, ou enfadonho. Sua escrita não é pobre, mas também não vai te fazer se sentir burro por ter que ler várias vezes as mesmas frases na tentativa de compreender o que é dito. A narrativa é linear. Embora ela comece cada carta falando um pouco sobre o presente, sobre as consequências dos atos do filho, conte alguma coisa dos julgamentos (o dele, na vara criminal, e o dela, na civil), sua montagem da história do Kevin, segue uma linha temporal direta. Do nascimento ao massacre. E vemos que, embora Kevin não tenha sido uma criança fácil, ela também não foi a melhor das mães.
 "As pessoas parecem capazes de se acostumar com qualquer coisa, e a distância é muito curta entre adaptação e apego."

O que é a maternidade? Como se dá esse processo em que mulheres assumem uma nova identidade, uma nova função na vida? O quanto o nascimento de um filho muda a vida de uma mulher? De um casal? Sendo uma pessoa, que, para começo de conversa, nunca ansiou por esse papel, Eva Khatchadourian apresenta um vislumbre cru e talvez um pouco chocante sobre a maternidade. Independentemente do tipo de criança que o Kevin se mostra, a narrativa da Lionel não nos poupa de nenhum dos dramas desse universo. Ela nunca doura a pílula.

Embora a narrativa seja em primeira pessoa, e nossa visão esteja restrita às opiniões da Eva, os personagens são muito bem construídos. Ela consegue nos fazer visualizar os outros membros da família de uma maneira bem tridimensional. 
 "Nada é interessante se você não estiver interessado."

A adaptação para o cinema, com Ezra Miller e Tilda Swinton nos papéis principais, embora seja muito boa, mal arranha a profundidade das discussões e questionamentos apresentados no livro. A maior decepção do filme, talvez seja a personagem do Franklin, pai do Kevin. Sua descrição é tão diferente do apresentado no filme que chega a ser revoltante. Ezra, lógico, faz um Kevin fantástico.
A edição da Intrínseca tem papel amarelado e fonte de tamanho confortável à leitura. A capa original é perturbadora, o que dá o tom para o início do livro. Infelizmente, essa capa é difícil de encontrar, (agora é encontrada facilmente em várias livrarias. ¬¬), o meu exemplar é com a capa do filme, que, ao trazer os pais do Kevin na capa, desastrosamente fica como um lembrete constante da péssima adaptação do personagem do pai para as telas.

"A definição do local verdadeiramente estrangeiro é que ele instiga uma ânsia penetrante e perpétua de voltar para casa."

‘Precisamos falar sobre o Kevin’ foi, sem favor nenhum, um dos melhores livros que eu li ano passado. Enredo interessante, história bem contada, personagens fascinantes, e um tapa na cara atrás do outro. Lionel definitivamente me fez pensar melhor sobre a possibilidade de ser mãe. No fim, esse é um livro que coloca um novo foco sobre a maternidade. Esse universo, comumente descrito como o sétimo céu, onde as mães ‘padecem no paraíso’, para Lionel, é a fonte de onde ela desenvolve uma personagem ambígua, sincera e dolorosamente real, que ao nos chocar com suas opiniões e ações, nos força a encarar o pior lado de nós mesmos. 

"Eu queria o que não podia imaginar. Queria ser transformada, queria ser transportada. Queria que uma porta se abrisse e toda uma nova vista que eu não sabia existir ali fora se esparramasse diante de meus olhos. Eu queria no mínimo uma revelação, e revelações, por sua própria natureza, não podem ser antecipadas; elas prometem aquilo  que ainda não se conhece."

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Confissões do crematório e a boa morte



Eu admito que possuo uma das tatuagens mais clichês de todos os tempos, o bom e velho Carpe diem. Em minha defesa, ele vem seguido de uma frase um pouco mais original, mas com sentido parecido: Memento Mori. “Aproveite o dia. Lembre-se que você vai morrer”. Embora tenha sim havido uma febre por essa frase (e por todo esse conceito) há alguns poucos anos atrás, e eu ainda escute algumas piadinhas por conta dela nos dias de hoje, eu nunca cogitei realmente cobrir ou mudar essa tatuagem. A ideia de que vamos morrer, e por isso devemos aproveitar o dia, e a vida, sempre foi muito, muito clara pra mim.

Talvez devido ao grande número de animais de estimação na infância, a morte sempre me foi algo muito real, muito palpável. E sempre achei um tanto surpreendente o quanto as pessoas evitam tratar desse assunto, e se afastam das pessoas em luto como se elas estivessem contaminadas com algo altamente contagioso. Como se o luto pudesse passar de uma pessoa para outra pelo ar. Nascemos, crescemos e morremos. A morte não é o oposto da vida, mas uma parte importante dela. Só pode morrer o que está vivo, e tudo o que vive, em algum momento vai morrer. É a nossa única certeza, e surpreendentemente, uma das coisas menos pensadas, planejadas, e discutidas por nós.

"A morte deveria ser conhecida. Conhecida como um árduo processo mental, físico e emocional, respeitada e temida pelo que é."

Quando a Raquel (mais uma vez a pipoca criando a minha lista de leitura) fez o vídeo falando dos 5 motivos para ler Smoke gets in your eyes, eu fiquei muito interessada... mas o livro era em inglês, e meu inglês fraco somado à minha preguiça me impedem de ler em outras línguas que não o português. Mas, eis que a Darkside <3 lança uma edição maravilhosa, e eu finalmente fui mergulhar na prosa de Caitlin Doughty.

Confissões do crematório, nome da edição nacional, não é um romance. Caitlin, com apenas 23 anos, esperando espantar velhos fantasmas e resolver as suas questões fundamentais, sai à procura de empregos que lidem com a morte e acaba contratada por uma casa funerária que realiza cremação e embalsamamentos. Ao longo de 19 capítulos, ela nos conta suas histórias como agente funerária. Algumas tristes, outras inusitadas, mas todas interessantes, e intercala suas ideias com informações históricas e científicas. 

"Os seres humanos não são os favoritos da natureza. Somos apenas um de uma variedade de espécies nas quais a natureza exerce sua força de forma indiscriminada."

Traçando um caminho sobre como diferentes povos e culturas tratam seus mortos e realizam seus funerais, Caitlin nos mostra o quanto nos escondemos da morte, o quanto escondemos a morte. Desde as manobras hospitalares para esconder os cadáveres dos pacientes e acompanhantes ao redor, aos necrotérios no subsolo, dos velórios sem corpo presente às funerárias que realizam a coleta do corpo e a cremação, enviando posteriormente as cinzas para a família por correio, dispensando qualquer proximidade com o morto, Caitlin escancara como vivemos tentando fingir que a morte não existe. Como se não fosse ela que estivesse a nos esperar, no fim de toda e qualquer estrada que escolhamos.  

A ideia que permeia todo o livro é a de que precisamos encarar a morte. A nossa e a das pessoas ao nosso redor. Precisamos aceitar que ela faz parte de cada vida que existe na Terra. Só assim poderemos viver vidas plenas e felizes, pois é a morte torna a vida sagrada, e fingir que ela não existe, ou se rebelar quando ela se mostra indiferente aos nossos afetos e apelos vai apenas tornar a nossa existência angustiante. A morte espera por todos nós, e compreender e aceitar isso é o melhor caminho para viver uma vida bem vivida. 


 "Aceitar a morte não quer dizer que você não vai ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que você vai ser capaz de se concentrar na sua dor, sem o peso das questões existenciais maiores como 'Por que as pessoas morrem?' e 'Por que isso está acontecendo comigo?'. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo com todo mundo."