Eu jamais diria que Precisamos falar sobre o Kevin é um
livro que eu poderia ter escrito. Provavelmente, nem em 100 anos eu seria capaz
de escrever com a perícia da Lionel Shriver. Mas, descontando-se o estilo,
confesso eu me vi constantemente na leitura. Em vários momentos, trechos
inteiros me pareciam terem sido extraídos diretamente dos meus próprios
pensamentos e questionamentos. Pensando bem, mesmo sem considerar a sua maneira
sensacional de organizar as palavras, dificilmente esse seria um livro que eu
teria escrito. Muito do que é dito compõe aqueles pensamentos impróprios,
egoístas, asquerosos, que temos na calada da noite e não compartilhamos com
ninguém, com medo do que pensarão de nós se os revelarmos.
"Para mim, no momento, importa ser mais compreendida que amada."
Em formas de cartas, o livro acompanha
Eva Khatchadourian na reconstrução da sua maternidade. Seu filho Kevin, aos 15 anos se
dirigiu à sua escola munido de uma besta carregada de flechas e matou 9
pessoas, em um tipo de crime preocupantemente comum nos EUA. Por que ele fez
isso? Qual é a participação dela, como mãe, nesses assassinatos? É culpa da
criação? Dos genes? Do ambiente? Dos familiares? Nas cartas, sempre
direcionadas ao pai de Kevin, Eva traça um caminho desde a discussão de ‘ter ou
não ter um filho’ até a fatídica quinta-feira
na tentativa de compreender o que aconteceu, e qual é a participação de cada um
dos atores envolvidos nesse massacre.
"Há qualquer coisa de niilista em não ter filhos, Franklin. Como se você não acreditasse nessa coisa toda de humanidade."
Para começo de conversa, a
escrita da Lionel é magistral. Sua forma de adjetivar é fantástica. É um livro
bem escrito, sem ser pedante, ou enfadonho. Sua escrita não é pobre, mas também
não vai te fazer se sentir burro por ter que ler várias vezes as mesmas frases
na tentativa de compreender o que é dito. A narrativa é linear. Embora ela
comece cada carta falando um pouco sobre o presente, sobre as consequências dos
atos do filho, conte alguma coisa dos julgamentos (o dele, na vara criminal, e
o dela, na civil), sua montagem da história do Kevin, segue uma linha temporal
direta. Do nascimento ao massacre. E vemos que, embora Kevin não tenha sido uma
criança fácil, ela também não foi a melhor das mães.
"As pessoas parecem capazes de se acostumar com qualquer coisa, e a distância é muito curta entre adaptação e apego."
O que é a maternidade? Como se dá
esse processo em que mulheres assumem uma nova identidade, uma nova função na
vida? O quanto o nascimento de um filho muda a vida de uma mulher? De um casal?
Sendo uma pessoa, que, para começo de conversa, nunca ansiou por esse papel,
Eva Khatchadourian apresenta um vislumbre cru e talvez um pouco chocante sobre a
maternidade. Independentemente do tipo de criança que o Kevin se mostra, a
narrativa da Lionel não nos poupa de nenhum dos dramas desse universo. Ela
nunca doura a pílula.
Embora a narrativa seja em
primeira pessoa, e nossa visão esteja restrita às opiniões da Eva, os
personagens são muito bem construídos. Ela consegue nos fazer visualizar os
outros membros da família de uma maneira bem tridimensional.
"Nada é interessante se você não estiver interessado."
A adaptação para o cinema, com
Ezra Miller e Tilda Swinton nos papéis principais, embora seja muito boa, mal arranha a
profundidade das discussões e questionamentos apresentados no livro. A maior
decepção do filme, talvez seja a personagem do Franklin, pai do Kevin. Sua
descrição é tão diferente do apresentado no filme que chega a ser revoltante.
Ezra, lógico, faz um Kevin fantástico.
A edição da Intrínseca tem papel
amarelado e fonte de tamanho confortável à leitura. A capa original é
perturbadora, o que dá o tom para o início do livro. Infelizmente, essa capa é
difícil de encontrar, (agora é encontrada facilmente em várias livrarias. ¬¬), o meu exemplar é com a capa do filme, que, ao trazer os pais
do Kevin na capa, desastrosamente fica como um lembrete constante da péssima
adaptação do personagem do pai para as telas.
"A definição do local verdadeiramente estrangeiro é que ele instiga uma ânsia penetrante e perpétua de voltar para casa."
‘Precisamos falar sobre o Kevin’
foi, sem favor nenhum, um dos melhores livros que eu li ano passado. Enredo
interessante, história bem contada, personagens fascinantes, e um tapa na cara
atrás do outro. Lionel definitivamente me fez pensar melhor sobre a
possibilidade de ser mãe. No fim, esse é um livro que coloca um novo foco sobre
a maternidade. Esse universo, comumente descrito como o sétimo céu, onde as
mães ‘padecem no paraíso’, para Lionel, é a fonte de onde ela desenvolve uma
personagem ambígua, sincera e dolorosamente real, que ao nos chocar com suas
opiniões e ações, nos força a encarar o pior lado de nós mesmos.
"Eu queria o que não podia imaginar. Queria ser transformada, queria ser transportada. Queria que uma porta se abrisse e toda uma nova vista que eu não sabia existir ali fora se esparramasse diante de meus olhos. Eu queria no mínimo uma revelação, e revelações, por sua própria natureza, não podem ser antecipadas; elas prometem aquilo que ainda não se conhece."
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